A ética representa muito mais do que um conjunto de normas a serem seguidas; trata-se de uma dimensão profundamente humana, que permeia a prática profissional em todos os seus aspectos. No campo da perícia médica, essa dimensão ética não apenas orienta a conduta do perito, como também constitui a base sobre a qual repousa a legitimidade do seu trabalho. A perícia não é um exercício neutro de saber técnico: é, antes, um ato de responsabilidade social, cujas implicações podem alterar destinos, influenciar decisões judiciais e impactar diretamente a vida das pessoas envolvidas.
Por isso, é necessário reconhecer que o perito não atua no vácuo moral. Ele está inserido em um contexto no qual a objetividade técnica deve dialogar com valores como justiça, empatia, responsabilidade e, acima de tudo, integridade. Ética, nesse sentido, não é apenas a observância das normas estabelecidas, mas a capacidade de fazer escolhas sensatas diante da complexidade dos casos concretos. O perito ético é aquele que compreende que, embora seu trabalho se apoie na ciência, sua credibilidade se sustenta na confiança que inspira.
Entre os muitos princípios que norteiam a atuação do perito, talvez nenhum seja tão frequentemente citado — e, paradoxalmente, tão pouco refletido — quanto a imparcialidade. É comum tratá-la como um ideal abstrato, um valor automático ao exercício da função. Mas ser imparcial não é simplesmente “não tomar partido”: é um exercício constante de vigilância interna, que exige do perito a disposição de confrontar seus próprios vieses, crenças e limites.
Na prática, a imparcialidade não se resume a recusar influências externas; ela implica reconhecer que o ser humano é, por natureza, suscetível a simpatias, antipatias, julgamentos prévios e tendências inconscientes. A ética pericial exige que o profissional esteja consciente desses riscos e se disponha a enfrentá-los, sob pena de comprometer não apenas o conteúdo do laudo, mas a própria confiança social no sistema pericial.
Além disso, há um aspecto frequentemente negligenciado: a imparcialidade não é um atributo apenas individual, mas também institucional. O contexto em que o perito atua — seja ele judicial ou administrativo — pode impor pressões sutis, demandas implícitas ou expectativas veladas. Saber reconhecer e resistir a essas forças externas é parte do compromisso ético que sustenta a atuação verdadeiramente independente.
O Código de Ética Médica oferece orientações valiosas sobre a conduta ética na perícia, incluindo recomendações sobre confidencialidade, veracidade, respeito ao periciando e responsabilidade na elaboração dos laudos. No entanto, é um erro tratá-lo como um manual exaustivo ou como uma tábua de salvação moral. O código não substitui o julgamento crítico do profissional; ao contrário, exige dele interpretação, discernimento e sensibilidade.
O perito deve ter consciência de que cada caso traz desafios únicos, que não cabem em fórmulas prontas. A ética, nesse contexto, é menos sobre cumprir procedimentos e mais sobre compreender o impacto humano das próprias ações. Além disso, a ética pericial envolve um grau elevado de responsabilidade narrativa. O perito escreve não apenas sobre dados clínicos, mas sobre histórias humanas, trajetórias interrompidas, dores invisíveis. Como bem já se afirmou, “o papel aceita tudo”, mas o perito ético sabe que cada palavra registrada pode carregar o peso de um destino.
Por fim, é importante ressaltar que a ética em perícia médica não deve ser vista como um conjunto de restrições ou obrigações. Pelo contrário, ela é uma força libertadora — pois oferece ao perito um referencial seguro para enfrentar dilemas e tomar decisões conscientes. A ética dignifica a técnica, pois a conecta com valores humanos mais amplos. Ela protege o periciando, mas também protege o próprio perito, que se resguarda contra arbitrariedades, conflitos de interesse e práticas reprováveis.
Em um tempo de crescente judicialização da saúde e de exposição pública das decisões técnicas, a figura do perito ético torna-se mais necessária do que nunca. A sua atuação, pautada não apenas pelo conhecimento, mas pelo compromisso moral com a justiça, fortalece a credibilidade do sistema pericial e contribui para a construção de uma sociedade mais equilibrada, onde o saber médico não serve ao poder, mas sim à verdade.
Autor: Dr. Ricardo de Lima Lacerda – Professor da Pós-Graduação em Medicina Legal e Perícias Médicas

